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Ler para crer
António Carlos Cortez

Teatro, educação e liberdade: 
ou o gosto pelos livros

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Para os estudantes da Escola Secundária do Restelo. Aos professores.

Foi na Livrarte, aquela livraria da Av. do Uruguai, em Benfica, que – guiado pelo bom gosto e a cultura do editor e livreiro José Antunes Ribeiro – comecei, por volta de 1992, a comprar livros de teatro. Tenho comigo alguns livros raros, edições dessas que nos lembram outras épocas em que, nas livrarias, ao saber dos livreiros se juntava a atmosfera de mistério de livros com lombadas gastas e títulos sedutores. Alguns estão aqui comigo, agora. Pu-los por sobre a mesa de trabalho e esplendem no seu silêncio as vozes de personagens inesquecíveis. Direi alguns desses livros: Esta Noite Improvisa-se, em edição da Editorial Estampa/Seara Nova, datada de 1974. Tradutores? Osório Mateus, Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. No prefácio extremamente completo e informativo, num português escorreito e claro, informações preciosas sobre esta peça publicada em Milão em 1930. O título português é uma tradução imperfeita do original, Questa Sera Si Recita a Soggetto. Recitar um esquema-cenário, uma história-cenário, isso era o que faziam os autores da “commedia dell’arte” e esses “scenarii” eram preenchidos “com o seu tradicional repertório de deixas, tiradas, réplicas, momentos de mímica, canções, variantes e acções típicas”, leio. Resume-se, depois dum primeiro parágrafo geral, a intriga da peça de Pirandello. O tema? O ciúme do passado e as personagens: Mommina, Totina, Dorina e Néne, com o espaço da acção nessa Sicília do princípio do século XX. Outras personagens e acções se cruzam e a improvisação faz-se a partir do esboço de uma acção. Liberdade e rigor aliam-se numa peça que pensa o próprio teatro: Hinkfuss, encenador é o narrador de uma história dentro da história que é Esta Noite Improvisa-se, director de uma companhia. O teatro? Alegoria da vida, aqui projectada numa “recita”: a estreia de uma peça, “Leonora Addio”, contada em jeito de reportagem. Pirandello ou a arte de narrar a história de um narrador: o “soggetto”. A vida representada e a vida imaginada, a vida da representação e a vida concreta, tudo aqui se mistura. Que é, pois, teatro? Uma forma tensa e intensa de pensar a vida representando-a, dando a personagens que são figuras de papel a carne verbal e o corpo físico que as farão outra coisa – de seres de papel, passam a seres ficcionais-reais.

Tenho outras peças de teatro que nessa livraria, e depois noutras, comprei e li. Havia nos anos 90 uma Feira do Livro Estrangeiro que, se não erro, se realizou, durante algum tempo, no Fórum Picoas. Aí adquiri (num Sábado de manhã? Numa tarde invernosa?) os seguintes livrinhos (uso o diminutivo porque são edições de bolso): El Gran Teatro del Mundo, das Ediciones Istmo (Madrid, 1974), com estudo de Domingo Yndurain; a peça de William Shakespeare, Julius Caesar, da Penguin Books e uma edição portuguesa (que também por lá andavam livros traduzidos) de Os Possessos, de Camus. Detenho-me na peça de Calderón de La Barca e na sua origem: o auto sacramental. Releio o estudo preliminar a esta peça de 1649 – magnífico estudo de Yndurain, absolutamente erudito, mas de uma clareza meridiana – e penso em edições do teatro de Gil Vicente (lembrado pelo ensaísta espanhol), também elas de bolso, quer da Editorial Comunicação, quer da colecção dos Clássicos Ulisseia. Onde estão essas colecções, hoje, circulando nas escolas?

Os livros de teatro, eu gosto deles. Regresso à Livrarte e, ao acaso das capas velhas que tenho aqui em cima da mesa, vejo a edição da Portugália Editora, da colecção ‘Problemas’, os Estudos sobre Teatro – para uma arte dramática não-aristotélica (capa azul, com os três triângulos a encimar, na parte esquerda e lateral do rosto, a sobriedade do volume), em tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. E da mesma Fiama percorro as páginas de O Aquário (Colecção “A Palavra”, Faro, 1959), uma peça de inspiração nipónica, e, de 1979, da editora Arcádia, na colecção teatro, a peça Quem Move as Árvores (“O Campesinato O Operariado”, poema de Fiama ajuda-me a ler esta peça). E outros livros: Teoremas de Teatro 3 (reunião de peças de Garcia Lorca e estudos relativos à peça Yerma), e continuando por terras de Espanha, o mesmo Lorca, numa edição que comprei em Tavira, no verão de 2014, A Casa de Bernarda Alba (Edições Europa-América, 1964) e que reli – inscrevendo no dia 9 de Julho de 2015, com letra carregada, para não mais esquecer, essa releitura – um dia depois do funeral de Maria de Jesus Barroso. Saberão hoje os alunos quem foi a actriz Maria Barroso? E Amélia Rey Colaço, fundadora da mais importante companhia teatral no Estado Novo? Com alguma emoção vejo a frase gravada a bronze em 2015: “A mim tratava-me de duas formas: “Poeta” ou “Querido amigo” – ou com terno diminutivo – “Querido amiguinho”. O teatro, o ensino, a cultura, a poesia, a música, não poderíamos nós, em 2024, defender uma reforma do ensino que libertasse professores e alunos da máquina de estupidificação e incultura em que todos vamos sendo comprimidos e formatados?

Há no teatro uma magia inexplicável que decorre da junção de três ou quatro grandes cruzamentos: o trabalho do texto, isto é, o modo como um dramaturgo compõe um universo de personagens que deve ser verosímil e criativo; o trabalho do encenador – que deve respeitar o texto e, simultaneamente, conduzir os actores que dão corpo às palavras e gestos aos pensamentos implícitos que essas palavras sugerem a um desempenho superior do texto – e, por fim, o trabalho dos que ficam responsáveis pelos adereços e pela música (quando existe). O teatro, tal como o ballet, é uma arte total e por isso é que, na educação em todos os graus de ensino, deveria haver um Plano Nacional de Ensino do Teatro. Por aí poderíamos estudar a Literatura e a História, aprender a linguagem do corpo e aprender a respeitar o corpo (hoje tão vilipendiado e banalizado). Com o teatro, superior forma literária, aprender a dizer com calma e boa dicção palavras com peso, conta e medida. O teatro feito por alunos, do 7º ao 12º anos, é, de facto, formativo, apelando aos afectos, comovendo, e agitando a inteligência, fazendo-nos pensar.

Recordo aulas que dei lendo, numa espécie de encenação feita no momento, e que se prolongava por seis aulas de 90 minutos, em vozes que eram a minha com as dos meus alunos, o modo como aprendíamos a comentar a obra-prima do teatro romântico português, o Frei Luís de Sousa. As cenas do clímax, Acto II, cenas XIII a XV, com Frei Jorge, Madalena e o Romeiro, falando entre si num crescendo de tensão dramática que culmina na célebre estirada: “Romeiro, Romeiro! Quem és tu?” e a resposta desse fantasma vindo do passado: “Ninguém!”, ao mesmo tempo que dizendo ser ninguém aponta para o seu retrato de há 21 anos, quando ele, o Romeiro, tinha sido Dom João de Portugal. Peça definidora do teatro luso, no 11º ano, esse texto pode ser um excelente pretexto para pensarmos num facto cultural bem português: a mutilação da formação geral do país no que respeita ao conhecimento e fruição do teatro. Antes do 25 de Abril que autores foram censurados? O que levou a ditadura de Salazar a perseguir livros, ideias, pessoas? Pensar Portugal, não por acaso alegorizado nesse Romeiro/ D. João que perde a identidade e diz ser “Ninguém” – não é essa uma das mensagens de Garrett para o nosso tempo? O teatro de Garrett não nos avisava dos perigos dum país à deriva, conduzido por elites iletradas? Perseguido ele próprio, Garrett, por Dona Maria II, intrigado na Corte, não é essa peça um libelo contra todas as formas de obscurantismo? Ler essa peça e fazer com que seja encenada em contexto de ensino, isso é urgente, pois, como outras, são textos que nos ajudam a construir a cidadania. Nós, em 2024, poderíamos todos repetir com o Romeiro quem somos: “Ninguém”. Olhando para um retrato antigo, o da nossa identidade perdida no tempo em que a própria Europa se perde de si, uma vez mais, creio que alunos e professores ganhariam muito em fazer teatro e, a reboque do teatro, organizar grupos de poesia, descobrir livros, colecções belíssimas de Poesia que mapeiam a nossa história contra o fascismo.

Teatro, livros… Eu gosto deles. E abro três outros livros. Um livro de ensaio e duas peças de teatro, edições dum outro tempo. Estou de novo na Livrarte, em 1997, com a Lúcia olhando-me e dizendo-me se quero, então, comprar História do Teatro Português, de Luciana Stegagno Picchio, a 1ª edição (Portugália Editora, Lisboa, 1964. Compro, pois claro! Sou professor de português, estudo literatura, devo ler e conhecer essa tese da grande lusitanista (com quem virei a jantar e a colaborar num volume sobre poesia portuguesa da Universidade de Roma, em 2012!). Belíssimo livro! Na capa a reprodução de uma imagem medieval: dois músicos tangendo dois instrumentos (um alaúde e aquilo que julgo ser um predecessor do violino) acompanhando, depreende-se, uma cena teatral. Detenho-me a ler os capítulos dessa tese que nos traz do teatro pré-vicentino aos anos quarenta do século XX, elencando dramaturgos que, receio, não se lêem e não se levam ao palco (e seriam todos para levar ao palco? Não é o nosso teatro esse imenso deserto com dois ou três oásis: Gil Vicente, António José da Silva e Garrett? Não foi esse o diagnóstico de António José Saraiva? Temos um teatro pobre porque a Inquisição (1536-1820), cerceou a imaginação, limitou a sátira, coarctou a nossa capacidade de rir. Inclusivamente de nós próprios. Ah! Teatro, liberdade!! Antes do 25 de Abril, tal como durante os séculos de Inquisição, ainda assim, houve quem tivesse a ousadia de rir pensando e fazendo pensar. Lembro ainda uma peça de teatro que, como aluno, em 1986, vi na minha escola: O Auto da Alma, de mestre Gil… Inesquecível. Em 1991 fiquei com todas as Obras Completas do nosso grande poeta e, como professor, em 2002, adaptei a peça para a representar no colégio onde leccionada.

E é isto: viajo no tempo e regresso a outras quatro peças de teatro que li e reli, maravilhado. Compradas na livraria do Zé Ribeiro, pois claro! O Indesejado – António, Rei, de Jorge de Sena; O Render dos Heróis de José Cardoso Pires (a edição da Moares, a 4ª, de 1978); e, de Strindberg da Editorial Presença, com data de 1963, o volume onde se reúnem três textos: A Tempestade, A Casa Queimada e A Menina Júlia. Foi esta última que me levou, há já uns bons anos, a ir ver, ao vivo, com o meu saudoso mestre e amigo, Gastão Cruz (2941-2022), a Alexandra Lencastre num seu voltar a um teatro a abarrotar para dar vida a Miss July. E lembro, a propósito da tragédia centrada em Dom António Prior do Crato, quanto Jorge de Sena lutou em vida para que se construísse teatro de qualidade em Portugal. O Indesejado é uma peça escrita entre Dezembro de 1944 e Dezembro de 1945 e foi lida “a um largo grupo de escritores em Lisboa, em Março de 1946 e publicada depois em vários números da revista PORTVCALE, em 1949-50”. Em 1951 saía a 1ª edição em livro; peça que Sena leu, mais algumas vezes, a amigos como Sophia, antes de se ir embora do país, em 1959, para um exílio definitivo até 1978. Apesar de lida a amigos, Jorge de Sena constatava o óbvio: não obstante o alto valor desta sua tragédia, “muito pouca gente a terá lido”. Peça que vem na sequência de outras como La Reine Morte, de Montherland e de Murder in the Cathedral, de Eliot, esta, de Sena, em verso regular e branco, é fiel à História e repõe a sobriedade de Reinar después de morir, do dramaturgo espanhol Velez de Guevara, do século XVII.

Pergunto-me, aqui, olhando estes livros: Como podemos passar ao largo destas e de outras circunstâncias da nossa vida cultural dum tempo que foi ontem? Se houve censura, repressão e delação, nos livros houve resistência. É que não era tudo Fado, Fátima e Futebol (como hoje, receio bem, o seja bem mais) e havia quem insistisse em clamar pela liberdade. Pois é isso: o teatro é uma forma de resistência livre. Ilustra, faz rir e chorar, une na diferença, elimina preconceitos. Com a ditadura era impossível haver teatro, escolas, livros livres, já pensaram nisso? Um outro livrinho faz-me, de novo, ir a Tavira e a um outro verão, o de 2011, quando comprei numa feirinha, à noite, Desejo sob os Ulmeiros, de Eugene O’Neill, 1ª edição, na famosa colecção “das três abelhas”, lendo esta tradução de Jorge de Sena – nem de propósito!... E, nessa ocasião, comprei ainda, de Tenessee Williams, Subitamente no Verão Passado. Sim, no verão leio sempre imenso… Mas procuro ler o que ainda hoje é alvo de censura. Subtil censura, diga-se. Quem, na praia, lê Joe Orton ou procura ler teatro francês, o de Racine, o de Ionesco e o de Beckett? Não andamos todos a ser empurrados para livrinhos da moda - esses que são os das “bestas célebres” de que falava Alexandre O’Neiil?

Tenho comigo, queridos alunos, mais duas edições de que quero dar nota neste LER PARA CRER de hoje, o primeiro dos textos que, espero, vos leve a crer na leitura. Refiro obra de Brecht, em três volumes (capas de Tóssan!), da Portugália Editora, em traduções de Sena e de O’Neill, no volume I; de Ilse Losa e de Sena, no II volume e, no III, tradução directa de Yvette Centeno. Peças que são obras-primas: Mãe Coragem, desde logo. Deveria chamar a atenção para as versões de O’Neill (o nosso poeta que faz 100 anos em 24) de poemas no volume II. E mais teatro, para acabar esta minha homenagem a um dia que celebrámos há pouco – o Dia Mundial do Teatro – lembrando as peças de autores gregos, que líamos nos livrinhos da “Clássicos Inquérito” (Eurípides, Sófocles, Aristófanes), e perguntando a quem vai dirigir a pasta da Educação se não acharia bem – em conjunto com o Ministério da Cultura – lançar um programa de reedição destas e de outras obras-primas do teatro das mais diversas literaturas?

Vivemos hoje em democracia, sem censura, mas houve um Governo recente que nos tirou, sem nos perguntar se tal fazia sentido, uma peça teatral como Felizmente há Luar, de Luís de Sttau Monteiro. Peça sobre o general Gomes Freire de Andrade, escrita em 1961 e que só em 76 foi levada à cena, eu compreendo que Salazar proibisse a sua representação. Não compreendo que em 2024 os jovens portugueses não a leiam nas escolas. Por que razão se eliminou esta peça tão instigante?

É urgente nestes 50 anos do 25 de Abril ler e ver teatro. Ler e ouvir poesia. Viva o teatro! E cá iremos, nesta página neste vosso jornal, falando de livros, de cultura num tempo adverso (como foi sempre?). Tal e qual o que somos: livres com livros. Tal e Qual o que Era… tenho de ler esta peça do David. Mourão-Ferreira (1927-1996). Querem encená-la nesta vossa maravilhosa escola?

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