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25 de Abril

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Palestra de CLEMENTE ALVES 
ex-preso político do antigo regime

Foi com enorme gratidão que, no dia 19 de abril de 2024, demos as boas-vindas ao senhor Clemente Alves, membro do Conselho Nacional da URAP, na Escola Secundária do Restelo. Duas turmas de 9.º ano, alguns docentes e o diretor do Agrupamento aguardavam, expectantes, este encontro.

Passadas algumas semanas desde o primeiro contacto, era chegada a hora de ver e ouvir de perto o testemunho deste ex-preso político do Antigo Regime. As vinte e duas perguntas elaboradas, enviadas previamente, aguardavam resposta.

Dada tamanha curiosidade, Clemente Alves entendeu que estes jovens mereciam que percorresse os 350 quilómetros que o separavam do Restelo, opção preferível a uma conversa por Zoom. Não, online não teria sido o mesmo, já que o encontro findou com lágrimas e abraços partilhados num profundo agradecimento pela coragem de, aos vinte anos de idade, em véspera do seu casamento, fazer frente à impiedosa e sinistra PIDE/DGS.

A presença de Clemente Alves nesta escola foi um gesto de enorme humildade e grandeza, de extremo significado para que as novas gerações protejam e valorizem os direitos humanos e a democracia.

Somos gratos por ter partilhado a sua história de vida connosco, por ser um exemplo de coragem e esperança para as gerações futuras e oferecer uma perspetiva única aos nossos alunos sobre um período histórico difícil e ameaçador.

No final do encontro, gentilmente, o palestrante ofertou à Biblioteca Escolar o livro Elas estiveram nas prisões do fascismo, sobre as mulheres que passaram pelas prisões da ditadura, e outro intitulado Forte de Peniche Memória, Resistência e Luta, sobre os presos que cumpriram penas na fortaleza de Peniche.

Nesta publicação inaugural, o Jornal SER RESTELO apresenta duas transcrições e um podcast resultantes desta palestra de forma a levar parte deste importante testemunho à comunidade escolar. Tanto a História como a Escola têm o dever de se construírem a partir da memória.

Em nome dos alunos e professores da Escola Secundária do Restelo, apresentamos a nossa sincera admiração.

Bem-haja, senhor Clemente Alves!

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Duas transcrições do testemunho do Sr. Clemente Alves.

O MEDO NÃO PODE PODER MAIS DO QUE EU

(…) O regime tinha uma polícia política e tinha uma rede enorme de bufos, daqueles que ouviam as conversas e iam contar (como aquele, lá na minha aldeia, que, depois, foi denunciar o amigo, e que foi morto lá na cadeia). Eles tinham uma rede de informadores que davam conta de que havia gente ali a conspirar contra o regime, a pôr em causa que Angola não fosse nossa, etc, etc. E foi isso que me aconteceu. Em determinada altura, eu já trabalhava (…) aqui perto (comecei a trabalhar lá aos 16 anos), entretanto, já tinha sido também contactado por uma organização clandestina que conspirava contra o regime, que me tinha convidado a juntar a minha vontade e a minha necessidade de lutar contra o regime que nos oprimia a todos e pediu-me para aderir. Eu não vim aqui para vos falar de política, mas as pessoas têm que vir dizer isto, não é? Esta organização era a única força política organizada que lutava contra o regime fascista. E, quando me abordou, me perguntou: Então, mas tu não estás de acordo com o direito à liberdade de pensamento, que nós podemos falar uns com os outros. Estou, e é isso que eu quero. Então, tu não estás contra a guerra colonial? Estou, e é isso que eu quero… Eu era católico, era militante da Juventude Operária Católica. E depois, quando eles me falam destas coisas todas com as quais eu até estava de acordo, eles disseram-me: Olha, eu sou do Partido Comunista Português. Tu não queres aderir ao Partido Comunista e juntar a tua força à nossa força para nós tentarmos fazer alguma coisa para isto mudar? Eh pá, quando ouvi falar dos comunistas… Houlá! Eu, católico! Na igreja, até ouvia dizer que os comunistas eram vermelhos. Até o diabo era vermelho! O que é isto? Eu pensava: mas eles falam da liberdade de expressão, falam da liberdade de associação, falam contra a guerra colonial, querem liberdade e democracia. Falavam em democracia, que era uma coisa esquisita para mim… O que é isso, democracia? Bem, pronto, lá entrei… Desconfiado, muito desconfiado. E naturalmente que, quando se entra numa organização clandestina, também é necessário fazer algumas coisas que vão de acordo àquilo que se pretende fazer, que era a transformação do regime, aquele regime, e implantar uma sociedade democrática. E isto começa depois também a dar nas vistas. A gente, nas coisas que vai fazendo, expõe-se ao perigo.

A primeira tarefa que me deram para fazer foi distribuir panfletos à noite clandestinamente. (Olha, foi mais ou menos nesta altura do mês. Estava-se a aproximar o 1.º de maio (…) o dia internacional do trabalho e dos trabalhadores, em que em todos os países onde há o mínimo de liberdade se comemora os direitos dos trabalhadores e da dignidade no trabalho, que era uma coisa proibida naquele tipo em Portugal. Portanto, deram-me como tarefa, à noite, ir distribuir uns panfletos nas caixas do correio a apelar aos trabalhadores para que, no dia 1.º de maio, fizessem alguma coisa nas suas empresas para manifestar o seu descontentamento por o dia 1.º de maio não ser feriado e para reclamar melhores condições de trabalho, melhores salários, etc. Era só assim. E, então, eu tinha um casaco comprido, meti um pacote de panfletos dentro do bolso e lá fui por uma rua escondida sempre à espreita (…) e a gente entrava com facilidade nos prédios e punha aquilo rapidamente nas caixas do correio. E eu tremia, tinha medo, muito medo (…) Ao fundo da rua, vejo uma sombra. Pensei: é um polícia que vem atrás de mim.

Eu fiquei borrado de medo. A minha primeira reação foi pegar no pacote que tinha, estava uma camioneta estacionada na rua, e atirei aquilo para debaixo da camionete e fugi. Devo ter andado aí uns 100 metros, se calhar. E, a certa altura, as minhas pernas tremiam. Eu tive que me sentar. E envergonhado de mim, a sentir-me cobarde, chamar-me miserável, perguntava-me: Como é que tu vais viver, seu cobarde? Tu vais viver com esta cobardia? Viste uma sombra e borraste-te de medo? Tu vais conseguir viver? Tu vais gostar de ti? Eh pá, quando eu digo isto para mim, eu estava a chorar de vergonha. Quando disse isso para mim, enchi o peito de ar, voltei para trás, pus-me debaixo da camioneta, (sujei-me todo), peguei naquilo e tá, tá, tá, … (faz o gesto de meter os panfletos nas caixas do correio).

Imaginem a sensação que é de nós vencermos o nosso medo! Naturalmente, tendo cuidado e tal. Fiz o trabalho que tinha a fazer e, quando cheguei a casa, deitei-me na cama e chorei, chorei, chorei. Mas com uma alegria tão grande, porque me tinha conquistado, porque tinha vencido o medo. Vocês não imaginam! Foi das coisas mais importantes que me aconteceram na vida, este ato de vencer o medo (não é?), ir em frente, fez-me uma pessoa diferente. Eu, hoje, sou, julgo que sou… (gosto muito de mim) julgo que uma parte fundamental de mim nasceu naquele exato momento em que eu tive medo, em que eu fui capaz de o vencer. E, ao longo da vida, há muitos momentos de grandes dificuldades que se nos vão deparando e que nós até, à partida, achamos que não somos capazes de ultrapassar aquela barreira, aquele medo. Mas quando isso aconteceu comigo, eu lembrei-me sempre daquele momento. O medo não pode mais do que eu. Não pode poder mais do que eu.

(…)

LIBERDADE!

DEMOCRACIA!

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(…) Fui preso, algemado e levado para a prisão de Caxias.  

Quando lá cheguei, disseram-me: Você não vai estar aqui muito tempo. Nós sabemos que você vai casar amanhã. Nós queremos que você assine aqui uns papéis e nós vamos levá-lo outra vez (…) para você poder ir amanhã para o casamento. Disse: Está bem, tragam lá os papéis! Passados dois minutos, entra outro com um caderninho. Eles tinham prendido outras pessoas antes de mim. Eles antes de prenderem uma pessoa, primeiro, andavam atrás dela a ver onde é que ela ia, com quem falava, tentavam saber que conversas é que tinha havido, etc. Naquele caderninho, estavam coisas que eu tinha conversado com amigos meus e outras pessoas, portanto, estavam lá os nomes deles, outros não estavam os nomes porque eles não tinham conseguido saber os nomes... Estavam lá relatadas situações, coisas que eu tinha ido fazer. Olha, como escrever nas paredes [as palavras] Liberdade! Democracia! Eu tinha ido com alguém e eles só me identificaram a mim. Não sabiam quem era o alguém com quem eu fui.

Portanto, eu sabia quem era a pessoa com quem eu tinha ido pintar as palavras liberdade e democracia a tal sítio. É só isso que vocês querem que eu assine? É só isso e vais-te já embora. Pois, mas eu não assino! Não assinas, porquê? És burro ou quê? Não assino! Se Eu assinar isto, as pessoas que estão aqui vão ser presas. Nós já cá temos alguns! (...) Eu Não vou dizer.

Mal eu digo isto, a conversa mudou de figura. Murros, pontapés, … Eu deixei de estar sentado num banco (...) Eu estive nesta sessão de agressão durante dois dias e duas noites. Sem dormir. Ao fim de dois dias, duas noites, levaram-me para um outro edifício (...) onde estive mais dois ou três dias, supostamente para dormir, para descansar. Depois da primeira sessão de tortura, de espancamentos e privação de sono, nós, podendo mesmo dormir, não somos capazes de dormir. O corpo fica bêbado sem vinho, os pensamentos não desligam. Nós não somos capazes de desviar o pensamento. E cansamo-nos mais do que se estivéssemos despertos. Ao fim destes dois dias de suposto descanso, voltei a ser chamado para os interrogatórios onde estive cinco dias e cinco noites sem dormir, em pé. A única coisa que era permitida era andar pela sala assim... (anda de uma lado para outro). Ao fim do terceiro dia e da terceira noite, nós perdemos a noção do corpo que temos. Não sabemos se somos muito gordos, às vezes somos muito gordos, tropeçamos em nós. (...) O nosso pensamento é uma coisa difusa. É uma nuvem... embora haja algumas imagens que nós conseguimos ainda guardar e procurar para tentarmos evadir-nos.

Na altura, tinha lido um livro, salvo erro de Anatole France, escritor francês que eu adorava, chamava-se A ilha dos pinguins. O título é lindíssimo! Então, a imagem que me ocorria, que me assaltava neste delírio era uns pinguins, bandos de pinguins que me entravam pelas grades e eu corria atrás dos pinguins. Vejam o estado a que nós somos levados nesta tortura, podendo até nem ser acompanhada por espancamentos... Naquele momento, eles já não tinham muito interesse em me bater, mas ainda me bateram. Já agora, em relação às pancadas, quero-vos dizer outra coisa. Quando nós temos vontade de resistir, podem-nos bater à vontade. Bateram-me e eu senti as pancadas, mas não me doeram.

Nenhuma me doeu! Fiquei com nódoas negras, inchado, o corpo todo macerado. Eu não deixei que me doessem. 

Nós temos coisas fantásticas! Quando nós treinamos a coragem, quando nós determinamos que «Por aqui é que eu não vou!» Eh pá, nós ganhamos uma energia! Não há nada que seja capaz de nos derrubar.

 (...)

Para conseguir a primeira visita, o meu pai, a minha mãe, só me puderam visitar quase dez dias depois de ter sido preso. A sala de visitas tinha um vidro daqui desse lado e tinha aqui umas grades com um vidro de cada lado, (não é?) (…) Um guarda sentado ao meu lado e, do outro lado, estava também um guarda sentado ao lado das visitas. A minha mãe, quando entrou na sala de visitas e me viu ainda combalido, a minha mãe, coitada, desatou a chorar: "O meu filho! O meu filho!”. E o meu pai, que era um homem analfabeto, olhou para mim e leu logo assim: O meu filho está-se a aguentar! E disse: “Filho, eu já vi que te estás a portar como um homem. Filho, aguenta-te, meu filho! Aguenta-te! (Emociona-se.)

Imaginem a vitamina que isto nos dá, quando nós também estamos preocupados com os nossos familiares queridos, que se preocupam muito connosco (não é?) e que vão sofrer por nos verem assim... Quando o meu pai me diz isto, oh pá, venham de lá todas as pancadas... Estou cá para as aguentar. (Emociona-se.) Fui a julgamento. Um julgamento caricato. (...) O juiz começou a ler a sentença (...), chamou o meu nome: “Clemente Alves, 14 meses de prisão, que vai cumprir na Fortaleza do Forte de Peniche.”.

(...)

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