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Abençoada!

Maria do Mar

(Pseudónimo)

O móvel do século XVIII, o mais imponente lá de casa, ao qual chamamos, presunçosamente, biblioteca por guardar algumas relíquias livrescas, termina num pesado gavetão que guarda álbuns fotográficos, pequenos envelopes a dizerem Kodak, com amontoados de negativos, fotos soltas e amareladas pelo tempo e pela memória.

Ó mãe! Ajuda-me aqui a escolher uma foto tua para postar e verem como somos parecidas. Uma em que estejas bem bonita! Estou sempre bonita…, respondi-lhe com um piscar de olho.

Qual gruta de Ali Babá, ouviu-se o ranger do velho gavetão que se abria demoradamente. Nunca abre à primeira e, quando abre, fá-lo, invariavelmente, na diagonal. Sugere pouca vontade em desvendar os segredos que contém. A custo, acabou por se escancarar perante o ar curioso da minha filha.

Vá! Vamos tirar os álbuns todos. Não entendo como tens isto tão desarrumado, Mãe! Nem parece teu… (Tinha razão. Não poderia queixar-me tão cedo da desarrumação do seu quarto...)

Lembrei-me também, nesse momento, daquelas caixas com bonecos saltitões que, no impulso de se libertarem, nos fazem, invariavelmente, dar um passo atrás. Ali dentro, anos e anos de histórias...

És tu nesta fotografia, Mãe? Olhei, recuei um pouco. Não ouvi as perguntas e comentários que se seguiram. Peguei na imagem a preto e branco e, novamente, recuei. Agora, no tempo.

Sentada num banco de jardim, lá estava eu a olhar por cima do ombro para o fotógrafo escondido atrás de mim. Durante quanto tempo teria ele estado ali? O disparo lento e imprevisto da velha máquina fotográfica fizera-me sobressaltar e o impulso, ao virar-me, ficara, assim, registado. Era frequente sentir o sobressalto na presença daquele que me jurara amor, um rapaz inseguro e imaturo, por quem me julgava apaixonada.

Continuava a segurar a fotografia e os meus olhos não se detiveram nem nos meus jeans, de que tanto gostava, nem na camisa que mostrava os meus braços muito brancos e esguios. O meu olhar fixou-se apenas nas nódoas muito negras no braço muito branco. Eram marcas habituais resultantes de um namoro ciumento e opressivo. Dizia ele que era por amor, que eu era demasiado bonita, que era melhor esconder-me dos olhares dos outros, porque, um dia, podia ser traído. Dizia de dia o que sonhava à noite. Dizia os seus medos da pior forma, em ímpetos violentos, em gestos que feriam.

Mãe, és tu? Era. Mas era outra: uma menina inexperiente e crédula que demorou a reagir ao agressor.

Contei, demoradamente, à minha filha que, na sua idade, vivera um namoro nocivo que me devorava na maior infelicidade e angústia. Expliquei-lhe que a nossa dignidade tem (sempre!) de prevalecer ao medo em nome de um “amor” doentio. Contei-lhe como, naquela tarde, depois daquela fotografia, confessara essa mesma angústia à minha Mãe, que me aconselhou, acarinhou e amou, como sempre, profundamente. Fugi dele.

Abençoada! diria, anos depois, a minha Mãe.

Reparei, pouco depois, que a minha filha tinha postado uma fotografia nossa. Estávamos abraçadas, os meus braços brancos e ainda esguios envolviam-na. Por baixo, uma legenda: Amar é abraçar assim. Amo-te, Mãe!

 

Pelas Mulheres da minha vida e pela vida de outras Mulheres.

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